quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Piquete-Campos do Jordão

OMNIA MECUM PORTO
Diário de bordo: travessia Piquete-Campos do Jordão

A ansiedade desperta antes do relógio e a serra descortina sonolenta paisagem. A montanha se espreguiça pelo caminho, enquanto pássaros entoam partículas de sol lá e cá. Bom dia, ai vamos nós!
O caminho se descortina promissor ultrapassando curvas aos poucos. A cada volta, o verde se supera. Pequeninos animais, outros nem tanto, em número generoso, alternam piados numa orquestração serena de eucaliptos. Acompanham o escorregar das águas pelas tantas nascentes, refrigério do corpo e a poeira se assanha com o trepidar dos sapatos.
Suavidade dos ares a balançar folhas desprevenidas sobre peles distintas, como quem sussurra elegantes obscenidades, marca o compasso da marcha. Acima das nuvens, absorto pela paisagem, o coração a flutuar eternidades diante dos olhos.
A estrada, de terra, se faz de serpente e avança natureza a dentro. Grãos de poeira se lançam no ar ou se agarram em pulmões determinando o passo. O peso das mochilas contrasta com a suavidade com que as águas se apresentam à boca. Supra sumo da leveza, nesses instantes, o ser recria a alma, à moda antiga, cozendo o barro antes do assopro.
O caminho se divide em dois e, por instantes, nos instiga ao errante, mas velhas lembranças nos acodem e a tentação do novo se acalma. Passo a passo no terreno desigual aproxima-se uma antiga pousada, que se fez famosa pela pompa do primeiro morador. O Barão. E o alto da serra.
A figura desenhada em cores nebulosas da caseira solicita lembranças infantis de fantasmas e traz à tona velhas gargalhadas. A poucos passos de uma ruína, metros á frente, a breve espiada para trás é quase inevitável.
O olhar vagabundeia o horizonte estreitando laços. Um sem número de cores e formas, entre folhas, flores e árvores, atraem o espírito. Saciada a essência, por hora, resta alimentar o físico. Assim, a hora do almoço nos alcança em bem cuidada área militar. Chega a destoar do trajeto a construção humana. Projéteis se projetam sobre nossa atenção, ainda que deflagados. E a sensação é de estranheza.
Inesperado encontro de amigos reforça o lanche-almoço sobre a pedra e sob o céu mineiro. Não fosse este destoar de visual, o verde da natureza e o verde das fardas, nem seria percebida a fronteira. A preguiça, insidiosa, toma conta por instantes. O cansaço assinala os primeiros pontos, após 20km.
Mas, “a dor é temporária e o orgulho é para sempre”. Seguimos em frente, depois de breve despedida.
À medida que os passos seguem aumenta a sensação de quietude dentro de nós, mesmo que os ânimos se exaltem diante do ambiente. E a paz vai se alimentando de nossa ansiedade, quase guerra de titãs, e sai vencedora. A estrada serpenteia e, alternando subidas, embala o peito e incide afeto sobre nossas mentes agitadas pelo dia-a-dia. Do que foi percorrido, ao que precisa ser vencido: sutilezas divinas acariciando egos.
O fim da tarde nos alcança já próximos ao local de repouso. Gotículas imperceptíveis de sereno, peralteando sapatos, espalham alegrias sobre o pó da estrada e realçam o verde. E eu aqui a ver-te vertendo-te em mim...
O calor sedoso do chuveiro refaz um a um e o abrigo de madeira nos esparrama sobre os sacos de dormir. Tempo quebrado apenas pelo cheiro do fogão de lenha nos chamando. Atendido o estômago, o salpicar suave de estrelas expõe nebulosas no céu de primavera e recolhe sonhos semeando flores em desprevenidas coronárias. É noite, ainda que bem cedo. O friozinho bom acompanhando os ares da serra nos embala o sono.

O corpo pede a cama, assim como a alma pede o caminho. E o dia desabrocha no pequeno vilarejo. Encharco-me de ternura e sigo a jornada. Hoje o dia é santo, de santa, reconhecida. Mãe amada, senhora nossa. Pois faça-se em nós a energia renovada. E o corpo refeito pelo café. Seguir em frente, sempre e a toda hora. Agora. Por que não?
Solicitar da manhã a força e aplainar sonhos disformes - esse é o começo do dia. Resíduos de antiga mata atlântica nos acompanham e vão aos poucos desenhando as araucárias. A subida, prolongada, vai justificando a seqüência da descida, logo após o encontro do Parque. O cheiro difere do dia anterior, assim como a paisagem.
Tarefa das mais difíceis essa dos andarilhos: eleger belezas diferentes para coroar o encontro. Embora estabelecido o percurso, surpresas se oferecem aos olhos a todo instante. Milhares de borboletinhas, caso não tenham sido as mesmas, acompanham nossos passos por todo o trajeto do segundo dia. A tal ponto, e a todo ponto, de maneira que parecem ter se integrado as pernas que passam por elas, desfrutando o mesmo habitat.
Se antes foram nascentes, hoje são riachos, insistentes, esparramados, compondo outra trilha sonora, diferente dos pássaros. A cada ponte e a cada passo, a possibilidade das águas. Até que o descortinar das construções do Parque, beleza artificial dos humanos, solicita-nos de volta à sociedade.
Tudo o que se viu foi belo. Tudo o que foi oferecido nos falou de silencio. E todo o caminho se fez um aos nossos passos.
Apesar da distância. Além das expectativas. Acima do cansaço.
Todo esforço será recompensado.
Todo espaço será bem vindo.
E todo olhar será traduzido em amplitude.
Oroboro. Oro bobis. Orai pro nobis.
Diria: amém.

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